A figura de Tiradentes superou a ausência de registros oficiais e se tornou uma das mais populares da história brasileira
O mais famoso dos inconfidentes ou conspiradores, Joaquim José da Silva Xavier (1746-1792), conhecido como Tiradentes, tornou-se uma figura emblemática da história brasileira. Símbolo da Inconfidência Mineira , da conspiração mineira, ao defender os ideais emancipatórios da capitania homônima em relação à Coroa portuguesa, que subjugou a região cobrando impostos exagerados, sua popularidade se estende para além da educação manual e dos estudos acadêmicos. Sua imagem foi amplamente explorada no cinema, no teatro e no carnaval, nas letras dos sambas-enredo , e sua efígie foi estampada em moedas, cédulas, selos, chaveiros e até em embalagens de sabonetes e chocolates. .
“O mais interessante dessa multiplicidade de representações é o fato de não sabermos como era realmente Tiradentes”, diz André Figueiredo Rodrigues, do Programa de Pós-Graduação em História da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista (Unesp). ), no campus da cidade de Assis. Especialista na história da Inconfidência Mineira , a pesquisadora publicou recentemente, juntamente com a historiadora Maria Alda Barbosa Cabreira, o livro intitulado Em Busca de um rosto – Uma república e representação de Tiradentes(Editorial Humanitas), que relata, com base em extensa análise documental, como aquele alferes foi elevado à condição de herói nacional e uma imagem dele foi construída de acordo com os interesses dos grupos republicanos da segunda metade do século XIX. século. Fruto do trabalho de pesquisa de Barbosa Cabreira e Figueiredo Rodrigues, o livro reconstrói cronologicamente a produção de imagens que acabariam se tornando representações simbólicas de uma das maiores figuras da história colonial do Brasil.
Segundo relatos de seus companheiros de conspiração, como os do advogado e poeta carioca Inácio José de Alvarenga Peixoto (1742-1793), há conotações de desprezo: Tiradentes teria sido um homem feio, de olhos esbugalhados . O estalajadeiro João da Costa Rodrigues (1748-?) diz que era grisalho. A ausência de registros visuais do herói da Inconfidênciadeu origem a uma aproximação da imagem de Tiradentes com a de Jesus Cristo. Muito conveniente, essa interpretação se tornaria emblemática devido à correspondência de elementos plausíveis para que essa associação pudesse ser feita. “O fato de ter sido traído por um de seus amigos, como foi o caso de Joaquim Silvério dos Reis (1756-1792), e sua morte ter sido tomada como símbolo da defesa de um ideal de coletividade, levou a uma cristianização da sua imagem”, reflete Barbosa Cabreira. O historiador destaca que a execução por enforcamento, seu posterior desmembramento e a exposição da cabeça de Tiradentes em praça pública também contribuíram para isso.
Entre as estátuas esculpidas, destaca-se a que está no monumento central da praça que leva seu nome, na cidade de Ouro Preto, em Minas Gerais. A obra, inaugurada em 1894 e produzida em bronze pelo artista italiano diplomado em arquitetura e escultura, Virgílio Cestari (1861-?), foi selecionada em concurso organizado pelo governo de Minas Gerais, para a construção do obelisco dedicado para Tiradentes no coração da cidade.
À esquerda, uma representação de Jesus Cristo, de Antoon van Dyck, que inspirou a ilustração de Angelo AgostiniReprodução e Revista Ilustrada
“Apesar de ter obtido o segundo lugar, Cestari foi declarado vencedor quando se verificou que conseguia realizar a obra de acordo com as especificações do projeto, algo que o primeiro não conseguiu fazer”, diz Figueiredo Rodrigues. Para atingir seu objetivo, o escultor utilizou como referência um esboço feito em 1890 por um compatriota, o cartunista Angelo Agostini (1843-1910), que se inspirou na obra intitulada Cristo carregando a cruz , do pintor belga Antoon van Dyck ( 1599-1641), para produzir a primeira imagem de Tiradentes. Sem ter consciência de seu rosto, Agostini recorreu às prerrogativas estéticas da época para representar Tiradentes com barba e cabelos compridos, lembrando a imagem de Cristo”, acrescenta Figueiredo Rodrigues.
Embora não tenha conseguido reproduzir fielmente o desenho de Agostini, mesmo pelas dificuldades de transferi-lo para o modelo tridimensional, Cestari acabou sendo o criador de uma de suas principais representações, dada a importância da estátua para Ouro Preto, cidade conhecida por sua arquitetura barroca que recebe anualmente cerca de 500 mil turistas. “É uma imagem imponente que pode ser vista de qualquer lugar da cidade”, diz Figueiredo Rodrigues.
As obras escultóricas de Virgílio Cestari e Francisco de AndradeAndré Figueiredo Rodrigues
Outra obra emblemática está instalada em frente ao Palácio Tiradentes, no Rio de Janeiro, prédio que hoje abriga a Assembleia Legislativa do Estado. A estátua, esculpida em bronze por Francisco de Andrade (1893-1952) e inaugurada em 1926, representa um Tiradentes “mais cívico e menos rebelde, sem a corda no pescoço”, analisa Figueiredo Rodrigues referindo-se àquela representação que mais se identifica com o símbolo da República do que com o insurgente da colônia. Essa figura seria institucionalizada em períodos de estado de exceção, como os vividos no governo de Getúlio Vargas (1882-1954), em 1930, e durante a ditadura militar (1964-1985). No ano seguinte ao golpe, o marechal Humberto de Alencar Castelo Branco (1897-1967) sancionou a Lei nº 4.897 que institui Tiradentes como patrono cívico da nação. Em 1966, a estátua de Francisco Andrade foi erguida como efígie oficial. “Desde então, Tiradentes tornou-se disciplina obrigatória nas aulas de educação moral e cívica. E até 1986, as escolas públicas eram obrigadas a ter uma imagem do herói”, diz Figueiredo Rodrigues.
As representações da imagem de Tiradentes também se baseiam no contexto em que viveu. Sendo o quarto dos cinco filhos do casamento formado pelo português Domingos da Silva dos Santos (1698-1757) e a brasileira Antônia da Encarnação Xavier (1721-1755), Tiradentes se separou dos irmãos quando tinha cerca de 11 anos . Com a família dissolvida após a morte dos pais, foi morar com o padrinho, Sebastião Leitão. A sua capacidade de tratar problemas dentários foi imediatamente notada pelo seu padrinho, que o encorajou a seguir esta profissão.
“Apesar de não ter educação formal, Tiradentes acabou exercendo sua profissão com habilidade e passou a ser muito procurado por pessoas de diferentes camadas sociais”, diz Barbosa Cabreira, que também destaca sua capacidade de desenvolver próteses dentárias a partir de ossos de animais. , marfim e até ouro. No livro, Figueiredo Rodrigues e Barbosa Cabreira apresentam elementos que refutam o estereótipo de que Tiradentes teria sido um homem pobre. Sua família tinha boas condições econômicas e era proprietária de uma grande fazenda localizada entre as vilas de São José – atual cidade de Tiradentes – e São João del-Rei, em Minas Gerais.
Somados aos elementos que contribuem para a construção da imagem de Tiradentes como um bom homem que trouxe alívio a quem sofria de dor de dente estão as histórias dos frades José Carlos de Jesus Maria do Desterro (por volta de 1745-1825) e Raimundo da Anunciação Penaforte, que acompanhou o alferes nos seus últimos dias de prisão. Ambos caminharam ao lado de Tiradentes em direção à forca e em seus escritos exaltaram a figura passiva e humilde do condenado. “Em linhas gerais, a imagem dele será a de um homem de olhar franco, túnica branca, com crucifixo no peito e cabelos soltos até os ombros”, diz Figueiredo Rodrigues. A representação do herói ganharia força devido ao seu viés revolucionário, um mártir que se sacrificou pela República. A primeira representação de Tiradentes com uniforme de tenente viria em 1940, em um retrato desenhado pelo pintor paulista José Wasth Rodrigues (1891-1957). A obra, que o identifica como um patriota jovem, elegante e ao mesmo tempo austero, foi feita para integrar a exposição dedicada ao VIII Centenário de Portugal, realizada em Lisboa. “A proposta era representar Tiradentes em seu lado mais humano, quando ele aparece vestido com o uniforme de dragão do Regimento de Cavalaria de Minas Gerais”, diz Figueiredo Rodrigues. Tiradentes foi aceito no serviço militar em 1775, como tenente da 6ª Companhia dos Dragões de Minas, cargo que ocupou até sua morte. Foi feito para fazer parte da exposição dedicada ao 8º Centenário de Portugal, realizada em Lisboa. “A proposta era representar Tiradentes em seu lado mais humano, quando ele aparece vestido com o uniforme de dragão do Regimento de Cavalaria de Minas Gerais”, diz Figueiredo Rodrigues. Tiradentes foi aceito no serviço militar em 1775, como tenente da 6ª Companhia dos Dragões de Minas, cargo que ocupou até sua morte. Foi feito para fazer parte da exposição dedicada ao 8º Centenário de Portugal, realizada em Lisboa. “A proposta era representar Tiradentes em seu lado mais humano, quando ele aparece vestido com o uniforme de dragão do Regimento de Cavalaria de Minas Gerais”, diz Figueiredo Rodrigues. Tiradentes foi aceito no serviço militar em 1775, como tenente da 6ª Companhia dos Dragões de Minas, cargo que ocupou até sua morte.
Com a obra Tiradentes esquartejado (1893) –originalmente intitulada Tiradentes suplicido– , do pintor Pedro Américo (1843-1905), a representação do inseguro ganhou seu capítulo mais polêmico. Ao retratar o corpo do homem desmembrado na forca, com a cabeça separada do corpo e disposta ao lado de um crucifixo, a imagem se distancia da figura do herói que serviria de inspiração para os novos tempos da República. A grande pintura mostra o desfecho da morte de Tiradentes, em cumprimento à pena pelo crime de lesa-majestade, acusado de conspirar contra a Coroa portuguesa.
O artista, formado na École des Beaux-Arts de Paris, na França, já havia sido contratado antes de pintá-lo para retratar outros marcos da história do Brasil. No entanto, as repercussões antes da pintura do famoso artista foram negativas. “Ao optar pela representação do corpo desmembrado no cadafalso, Pedro Américo não só potencializa o poder da metrópole portuguesa sobre sua colônia na América, como revela a fragilidade de Tiradentes e a conspiração que ele foi acusado de liderar”, escreve Maraliz de Castro Vieira Christo, no artigo intitulado A fragmentação do corpo do herói e a sensibilidade do final do século XIX[O desmembramento do corpo do herói e a sensibilidade no final do século XIX]. Professor titular da Universidade Federal de Juiz de Fora, De Castro Vieira Christo é autor de um estudo que analisa a obra como uma espécie de desconstrução da imagem de Tiradentes, o que mina a integridade de sua representação como herói.
“O desmembramento do corpo alude ao desmantelamento da figura épica individualizada do conspirador”, diz Maria Helena Vicente Werneck, professora do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), que analisa em um ensaio as representações do martírio de Tiradentes a partir da apresentação ou ocultação da performance da morte em público. “O retrato do corpo inteiro ou desmembrado em uma representação artística nos remete a diferentes projetos estético-políticos que buscam ressignificar a figura histórica”, analisa Vicente Werneck. A pesquisadora destaca, entre diversos espetáculos de diversos momentos do teatro brasileiro, a encenação do musical Arena conta Tiradentes(1967), com textos de Augusto Boal (1931-2009) e Gianfrancesco Guarnieri (1934-2006), em que o grupo faz uma releitura cênico-narrativa de Inconfidência a partir dos acontecimentos da década de 1960, exaltando a figura de um Tiradentes capaz de cativando os revolucionários. “O que pudemos apreciar naquela mostra é também uma forma de desconstrução das imagens do herói sacrificial, na forca e do corpo condenado por desmembramento, para transformá-lo em sujeito político projetado na ação”, analisa .
A imagem de Tiradentes foi impressa em quatro selos postais: em 1948, 1963, 1992 e 2008Coleção: André Figueiredo Rodrigues
Famoso por dar seu nome a ruas, praças, escolas e prédios públicos, a representação visual do herói nacional transcendeu em sua dimensão como personagem histórico através da numismática e da filatelia. “Moedas, cédulas e selos foram alguns dos principais meios de divulgação da imagem da inconfidência , que começou a circular de mão em mão entre as pessoas enquanto se arraigava no imaginário popular”, diz Barbosa Cabreira.
A primeira representação veio com a nota de 5 mil cruzeiros (Cr$ 5.000), que circulou entre 1963 e 1974. A imagem reproduz a pintura Tiradentes ante o carrasco (1951), de Rafael Falco (1885-1967), que representa a cena do manhã em que o condenado se preparava para receber as vestes brancas, antes da procissão que o conduziria à forca. Já no anverso, no setor destinado à efígie, há uma imagem de Tiradentes que também se baseia na representação de Agostini. Em 1992, uma edição comemorativa da moeda, também por 5.000 cruzeiros, incluiu uma gravura inspirada na obra do pintor e caricaturista Décio Rodrigues Villares (1851-1931). Desde 1998, a moeda de 5 centavos apresenta uma representação adaptada da pintura de Falco.
Cédulas emitidas pela Casa de la Moneda em homenagem a TiradentesColeção: André Figueiredo Rodrigues
No campo da filatelia, Tiradentes estampa quatro edições oficiais brasileiras, a primeira em 1948, em comemoração ao bicentenário de seu nascimento. Em 1963, aparece na série Vultos célebres da história do Brasil . Em 1992 foi a vez do bicentenário de sua morte. Finalmente, em 2008, integra a série de selos Heróis da Pátria . Notas, moedas e selos postais são emitidos oficialmente pela Casa de la Moneda, com sede no Rio de Janeiro. O famoso herói também ganhou reconhecimento internacional com selos postais emitidos em Cuba (em 1988), Uruguai (em 1989) e República Dominicana (em 2014).
Embora a aparência de Tiradentes tenha sido semelhante à imagem de Jesus Cristo, os documentos que contêm as Ordens Devassas – o processo penal instaurado contra os infiéis – revelam que no momento de sua morte ele não tinha barba e sua cabeça estava raspada, para que o público presente pudesse observar melhor sua tortura. “Deve-se notar que as diversas representações de Tiradentes surgem da licença poética de autores que se dedicaram à criação de um mito, mas sua imagem continuará sendo constantemente construída”, conclui Barbosa Cabreira.